Da distante Ucrânia a Arouca. Uma viagem extraordinária de um médico, num Portugal que para si foi uma verdadeira “alma mater”, como quis sublinhar. Em Lisboa começou por trabalhar num lar, foi operário e carpinteiro, antes de chegar a Terras de Santas Mafalda, onde exerce Medicina Geral e Familiar, desde 2005. Aqui encontrou “pessoas maravilhosas” e sentiu-se apoiado desde o primeiro dia. Inclusive pelos autarcas da freguesia de Rossas, onde fixou residência.
A pouco tempo da reforma já fala de saudades, ainda que não “de para explicar por enquanto”.
As razões para ser médico.
Discurso Directo (D.D.): Com que idade quis ser médico na Ucrânia? Como surgiu essa opção de vida?
Serhiy Voronyak (S.V.): Acredito, que muitas vezes nós não escolhemos qualquer coisa na vida, mas a vida escolhe a nós. Quando tinha 12 anos, fizemos uma peça de teatro na escola, e por acaso foi escolhido para mim um papel de médico. A minha mãe arranjou uma bata branca, que eu gostei muito. No ano seguinte a minha mãe adoeceu e a minha vontade de ser médico aumentou para conseguir trata-la.
D.D.: O que o levou a escolher Portugal para emigrar?
S.V.: Após o colapso da União Soviética em 1991, a vida na Ucrânia mudou. Nós ficamos independentes e obtemos o direito de sair para o estrangeiro. Passámos tempos difíceis, a moeda desvalorizou-se. Para dar apoio para a família, conseguir obter uma educação superior para os filhos, precisava ganhar mais dinheiro. Tinha de escolher entre Espanha e Portugal – países onde era possível arranjar visto de residência, porque a Ucrânia não está na Unidade Europeia. Escolhi Portugal, porque já conhecia alguns compatriotas-vizinhos, que trabalhavam em Portugal.
D.D.: Em que ano é que isso aconteceu?
S.V.:Cheguei a Lisboa em Fevereiro de 2001. Não trazia nada nas mãos, só uma mala com poucos pertences. Não sabia língua portuguesa. Tinha quase 44 anos de idade. Mas passados 20 anos, posso dizer: valeu a pena.
D.D.: Como foram os primeiros tempos em Portugal?
S.V.:Arranjei trabalho num lar de idosos, em Lisboa. Fiquei por lá, a ganhar o ordenado mínimo, 3 meses. Depois, fui para Fafe para uma fábrica de carpintaria no lugar de Sargaça Estorãos, que vou lembrar sempre o nome do patrão Sr. Clemente Pinho da Silva, que não pagou nem um tostão pelo trabalho de três meses. Desanimado, voltei a procurar um ganha-pão. Encontrei-o em Válega, Ovar. Também como carpinteiro. E foi aí que a minha vida começou a mudar.
Ser médico em Portugal foi um processo difícil.
D.D.: Como surgiu a possibilidade de exercer medicina em Portugal?
S.V.:Fui falar com o diretor do Centro de Saúde de Ovar, Dr. Manuel Sebe, e pedi-lhe emprego na área mais próximo de medicina. Perguntou-me o que fazia. Disse que era médico. E ele respondeu que o lugar de um médico é a exercer Medicina. Ligou para a universidade de Coimbra, passou uma lista de documentos que eu devia arranjar e estimulou-me para tratar da licenciatura em medicina. Eu tinha de voltar a estudar para conseguir a equivalência do curso. Consegui. Fiz um exame no Hospital de Santo António, no Porto, ao lado de jovens finalistas. A seguir, fui estagiar para o Centro Hospitalar de Gaia.
D.D.: Foi um processo fácil ou difícil?
S.V.:Difícil. Durante nove meses de estágio, não recebia dinheiro. Foi o Dr. Manuel Sebe quem me ajudou a sobreviver e a recuperar a autoestima. Ele ofereceu-me uma casa em Ovar, onde eu vivia e não levou nenhum cêntimo de renda. Ainda agora às vezes nos comunicamos e somos amigos, colegas. Quando preciso, ele está sempre disponível para dar conselhos e ajuda. Agradeço muito a ele.
Como surge Arouca?
D.D.: Como surge Arouca no seu percurso profissional?
S.V.: Arouca surgiu por sugestão do Dr. Manuel Sebe de Ovar. Naquele tempo no Centro de Saúde em Arouca havia falta de médicos. No dia 07.03.2005 fui contratado pelo Diretor do C.S. de Arouca Dr. Dias Costa e Sub-região de Saúde de Aveiro. Para Rossas fui transferido no dia 26 setembro de 2005. Durante 15 anos tive várias mudanças para outros consultórios além de Rossas, por exemplo desde 16.08.2010 até 28.02.2017 – fazia consultas na Extensão de Saúde em Chave; desde 25.01.2017 – trabalhei no Centro de Saúde na lista de utentes Dra. Angelina Tavares.
D.D.: Que balanço faz do seu trabalho como médico de clínica geral?
S.V.:Sem dúvida, o balanço é positivo. Trabalhei na Ucrânia durante 21 anos. Mas o trabalho era diferente. Naquela altura na Ucrânia nós não tínhamos especialidade em Medicina Geral e Familiar. Trabalhamos numa policlínica, onde tínhamos médicos de todas as especialidades. Cada médico de Clínica Geral tinha 1500 utentes e a maior parte do trabalho eram consultas de saúde de adultos, observação profilático de doentes de risco: hipertensos, diabéticos e rastreios nas empresas, porque não existia separado medicina de trabalho. Por isto eu praticamente acabei duas vezes o estudo na universidade, uma vez – na Ucrânia, segunda vez – em Portugal. Aqui os médicos de Medicina Geral e Familiar sem dúvida são especialistas bem preparados. Agora no tempo de “guerra” com o coronavírus, muito trabalho é feito por eles. Médicos de Família são “abelhas-operárias” da primeira linha. O desgaste físico e emocional é grande. Por isto, nós todos devemos ainda mais avaliar e agradecer o trabalho dos médicos de MGF.
O apoio dos colegas.
D.D.: Sentiu-se apoiado pelos colegas de profissão?
S.V.: Senti-me apoiado desde o primeiro dia pela Dra. Angelina Tavares e pelo Dr. Jorge Sousa – são principais colegas, que estiveram sempre disponíveis para ajudar em qualquer hora. E sem dúvida quero agradecer a todos os colegas, nomeadamente Dr. Dias Costa, Dr. Artur Miller, Dra. Graça Azevedo, Dr. Celso Castro Soares, Dr. Vítor Brandão, Dra. Carina Mendonça, que sempre ficarão na memória como verdadeiros amigos.
D.D.: Como foi acolhido pelas gentes de Arouca?
S.V.:Em Rossas sempre fui apoiado pela Junta de Freguesia pelo Sr. José Paulo, pelo Sr. José António e pela Sra. Isabel Paiva, que sempre estiveram disponíveis para ouvir e ajudar. Periodicamente, festejamos o meu aniversário, realizado por um grupo de utentes e sempre com o apoio do Sr. José Paulo. Tive uma proposta de transferência por parte administrativa do ACES para outro local de trabalho, mas muitos utentes escreveram uma carta para ARS do Norte para que eu ficasse em Rossas. Fico também contente, quando pessoas desconhecidas marcam uma consulta porque são aconselhados pelos utentes já tratados pelo “médico-ucraniano”. O meu primeiro utente em 2005 foi o Sr. António David Gonçalves da Silva, que atualmente já tem 75 anos e mantemos boas relações. Sempre comunicamos com o Sr. Fernando Manuel de Pinho Almeida, que independentemente de não ser meu utente, continuamos a comunicar e a trocar conselhos.
Deixo aqui as minhas distintas palavras de agradecimento para Sr. Albino da Costa Pinho e Sra. Maria Conceição Duarte Barbosa, que são donos da casa em Rossas onde eu estou a viver, que tratam-me como se fosse da família.
“As pessoas de Arouca são maravilhosas!”
D.D.: Que imagem tem da população de Arouca?
S.V.:As pessoas de Arouca são maravilhosas! Sem dúvida que não somos todos iguais, mas todos gostamos de atenção, quando alguém está preocupado e poder dar ajuda no momento certo. Existe uma regra de ouro no atendimento que diz: “Atenda como gostaria de ser atendido”. Com esta regra dá para prevenir todos conflitos e manter relações boas com toda gente.
D.D.: Onde se encontra a trabalhar atualmente?
S.V.: Atualmente estou trabalhar na unidade de cuidados continuados da Santa Casa da Misericórdia de Arouca. O trabalho não é fácil, temos doentes com problemas de saúde complicados, que não podem ser tratados no domicílio, já passamos por um surto de Covid-19 na unidade, atualmente estamos todos vacinados. Temos uma ótima equipa de enfermagem, liderada pela Enfermeira Lúcia Ferreira, funcionários responsáveis chefiados pela Sra. Maria Conceição Almeida Ferreira de Pinho. A administração é dirigida pelo Sr. Provedor da Santa Casa da Misericórdia Dr. Vítor Brandão, que tenta sempre resolver da melhor maneira assuntos laborais.
Ser médico até ao fim da vida!
D.D.: Até quando pensa continuar a ser médico?
S.V.:Ser médico? Até ao fim da vida! Mas estar há 21 anos em Portugal – é muito tempo. Na Ucrânia tenho a minha família: esposa, dois filhos, dois netos, noras… E sem dúvida que queria ainda passar muito tempo com eles. Tenho 64 anos, até à idade da reforma faltam ainda 2 anos e 10 meses. Estou a tratar da reforma antecipada, vamos ver.
D.D.: Vai ter saudades da terra e das gentes de Arouca?
S.V.:Muitas saudades (acho não dá para explicar por enquanto). Portugal para mim é “alma mater” – segunda pátria, onde eu passei 21 anos da vida. Psicologia humana está construída assim: valorizamos e temos mais saudades das coisas, quando as perdemos. Por isto quero pedir a todos: vamos avaliar o que temos atualmente, deixar as críticas. Nós vivemos numa terra boa! Vejamos o que se passa nos outros países – cheias, tempestades, tremores de terra… Vamos pensar mais positivo, ajudar uns aos outros, não esquecer as regras básicas que atualmente fazem parte do nosso dia-a-dia (usar mascara, desinfetar as mãos e manter o distanciamento social), porque nós estamos num barco e devemos juntar-nos para vencer a “tempestade no mar” que se chama Covid-19 e inconveniências temporárias.
Entrevista: Óscar Pinho Brandão.