Os incêndios, a memória e os ensinamentos

Anda o mundo e o país a arder. Juntaram-se, uma vez mais, as condições propícias à calamidade: temperaturas muito altas, baixa humidade, ventos fortes e, por cá, décadas de abandono da floresta. E se o Estado não dá o exemplo, os privados, a quem pertence a grande mancha florestal, também pouco têm feito pela sua gestão equilibrada. Ou porque não é rentável e fica ao abandono, ou porque impera a lógica da maximização do lucro imediato que não é compatível com programas de longo prazo, postos ao serviço do país, no seu todo.

Assistimos, nas últimas décadas, ao despovoamento de grande parte do território e ao abandono do mundo rural. Ganham terreno, quantas vezes de forma completamente desregrada, as monoculturas, especialmente do eucalipto e proliferam, sem controle, infestantes com as acácias.  As consequências, trágicas, estão à vista e tudo isto se paga muito caro, contrastando com os discursos compungidos do momento, articulados, ao desbarato, quando as desgraças acontecem.

Ordenamento florestal, guardas florestais, guarda rios e outras realidades semelhantes são, para quem tem responsabilidades de decisão, palavras ocas e de circunstância, mas que deixam saudades pelo significado e importância que tiveram. Neste contexto, nada melhor do que recordar, uma vez mais, as palavras sábias e sensatas, fruto de muita experiência e conhecimento, do engenheiro Próspero dos Santos que foi responsável pelos viveiros florestais da Granja e pela reflorestação dos baldios da serra, nas décadas de 50 e 60 do século passado, ação também retratada, com um colorido realismo, por Aquilino Ribeiro em Quando os Lobos Uivam.

Relembro e transcrevo, na íntegra, uma carta manuscrita, datada de 13 de novembro de 2005, dirigida à direção da Urtiarda, após convite dirigido ao autor para este estar presente, como palestrante, nas Jornadas da Terra, iniciativa que essa associação organizou, anos a fio, em parceria com o Conjunto Etnográfico de Moldes. Reza assim o manuscrito:

Men Martins

13 de novembro de 2005

Ex.ma Direção da Urtiarda

Foi com emoção que após a leitura da vossa carta, vi as imagens em CD, do que resta do viveiro da Granja. Essas imagens refletem a mentalidade dos Serviços Florestais em relação ao trabalho que técnicos realizaram em prol dos baldios que lhes foram entregues. Os planos de arborização foram feitos com o intuito de estancar a erosão que se verificava nas serras. A espécie utilizada só servia para repor, com o tempo e os cuidados respetivos, o solo que as pastagens intensivas e as chuvas ocasionavam. A ideia era fixar o terreno e depois repor essas áreas com as plantas próprias das zonas que trabalhávamos, como seria na zona da Castanheira, os carvalhos e os castanheiros e, ao longo das linhas de água, os freixos e as (…). Esta era a ideia que pendia no espírito dos técnicos florestais. O uso múltiplo dessas áreas fazia com que nos viveiros e junto às casas da guarda se implantassem espécies exóticas para acolher que fosse visitar esses perímetros e assim compreendessem o valor da floresta como um bem a preservar. Foi este o espírito que orientou o meu trabalho nos dez anos que estive em Arouca. Amando a serra e as suas gentes, estava a cumprir uma missão que vocês agora querem dar continuidade. Sejam corajosos e prossigam o vosso trabalho que por certo serão bem julgados pelos futuros habitantes de Rôssas e Arouca. No que se refere ao vosso convite, é com pena que não possa aceitar, pois nessa altura, 3 de dezembro, não estarei em Portugal. Outros momentos devem surgir e será com prazer que irei conversar com pessoas que merecem muita consideração e respeito. Nos tempos que correm será difícil encontrar pessoas tão amantes da vida, neste mundo em que a morte tem mais adeptos.

Muito obrigado pelas vossas palavras e aceitem a amizade e admiração deste já vosso amigo.

Francisco Próspero dos Santos

O engenheiro Próspero dos Santos não esteve presente na iniciativa, com enorme desgosto dos organizadores. Não sei se ainda faz parte do rol dos vivos mas os seus ensinamentos, duma atualidade gritante, são intemporais.

António Óscar Brandão

Rôssas, Arouca, 17-09-2024

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